Adivinhem de quem é a culpa...
O planeta está a aquecer e a culpa, em grande parte, é do homem. Mesmo que hoje se reduzissem drasticamente as emissões de gases com efeito de estufa, o aquecimento global é inevitável pelo menos nos próximos cem anos. São as conclusões de um relatório de referência que reúne 2500 cientistas de todo o mundo. O tom é de alerta. Os decisores políticos saberão lê-lo? Por Kathleen Gomes
É uma verdade inconveniente: os efeitos do aquecimento global vão continuar a sentir-se nos próximos cem anos, mesmo que de hoje para amanhã se eliminem as emissões de gases com efeito de estufa. Ou seja, mesmo que você deixe o carro na garagem ou os países industrializados reduzam drasticamente as emissões de gases poluentes para a atmosfera, o aquecimento global não voltará atrás tão depressa. E a culpa é sua. Já se desconfiava, as provas são cada vez mais irrefutáveis: o homem tem uma grande responsabilidade nas alterações climáticas registadas nos últimos anos.
Estas são as principais conclusões do novo relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), que não é apenas mais um estudo académico sobre a matéria - é o documento de referência porque reúne 2500 cientistas de todo o mundo com produção relevante sobre mudanças climáticas. Como nota Francisco Ferreira, dirigente da organização ambiental Quercus que tem estudado as alterações climáticas, "este é o relatório científico mais extenso e rigoroso sobre as alterações climáticas à escala mundial". O relatório será apresentado no início de 2007 mas o seu esboço final foi ontem antecipado pelo diário espanhol El País
A culpa humana
Os cientistas podem hoje afirmar com maior grau de certeza que o homem tem responsabilidade no aquecimento global. Esta é uma preocupação dos últimos dez anos que tem carecido de comprovação científica total, porque é impossível atribuir uma causa directa às alterações climáticas. Como lembra o climatologista Ricardo Trigo, do Centro de Geofísica da Faculdade de Ciências de Lisboa, há várias causas naturais que contribuem para o aquecimento global, entre elas, a variação da intensidade de radiação de energia solar e as erupções vulcânicas. O El País propõe esta analogia: é tão impossível dizer que um cancro de pulmão de um fumador se deve ao tabaco quanto dizer, com 100 por cento de segurança, que uma onda de calor se deve à acção do homem.
O anterior relatório do IPCC, publicado em 2001, já avançava que o homem tinha responsabilidade nas mudanças climáticas verificadas nos últimos 50 anos. Mas o tom era mais cauteloso. O novo relatório vem reforçar essa conclusão com mais provas e precisão. O documento assinala que o aumento de fenómenos extremos - como secas e ondas de calor - "pode ser atribuído a mudanças climáticas antropogénicas", isto é, produzidas por acção humana.Segundo o relatório, nunca os níveis de concentração de gases com efeito de estufa na altmosfera (gases que impedem a saída do calor emitido pela superfície terrestre) foram tão elevados. Nunca quer dizer: nos últimos 650 mil anos. A par disso, o ritmo actual de aumento desses gases na atmosfera "não tem precedentes nos últimos 20 mil anos", cita o jornal El País.
O mal está feito
Há mais más notícias: mesmo que se conseguisse estabilizar a concentração desses gases - o que implicaria mudar drasticamente a actividade e economia mundiais -, o mal está feito e o planeta levaria tempo a reabilitar-se. Ou seja, o aumento da temperatura e do nível do mar vai continuar durante mais de 100 anos.Nesse período, as projecções do IPCC apontam para um aumento de temperatura "entre 2 e 4,5 graus, sendo 3 graus o valor mais provável". Em todo o caso, valores superiores a 4,5 graus "não podem ser excluídos". Um aumento de dois graus, aponta Francisco Ferreira, já representa um aumento "de proporções catastróficas". O novo relatório do IPCC vem "concretizar suspeições que existem há dez anos", nota Ricardo Trigo, e isso é importante porque "ajuda a tirar dúvidas a quem ainda as tivesse".
Se o mal está feito - se, mesmo que mudássemos a nossa forma de vida tal como a conhecemos, os efeitos vão continuar -, isso quer dizer que é tarde demais? "É uma questão importante", sublinha Ricardo Trigo. "Muitos investigadores que trabalham nos melhores centros internacionais dizem que mesmo que no melhor dos cenários se conseguisse reduzir em 50 ou 60 por cento as emissões do gases com efeito de estufa é imprescindível gastar-se muito dinheiro em soluções tecnológicas que permitam aos países adaptar-se às novas condições. Se há um aumento do nível médio do mar, os países que têm costa precisam de pensar em medidas para enfrentar o problema."O Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas foi criado em 1988 pela Organização Meteorológica Mundial e pelo Programa Ambiental das Nações Unidas.
Relatório será "decisivo" para as negociações pós-Quioto
Para se ter uma ideia da relevância dos relatórios do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) - desde 1990, este é o quarto - Francisco Ferreira, da Quercus, resume: "É com base nesses relatórios que têm sido sempre tomadas as decisões políticas. A Convenção das Nações Unidas para as Alterações Climáticas surge em 1992 como consequência do primeiro relatório. E o Protocolo de Quioto, em 1997, surge na sequência do segundo relatório, que é de 1995." Há, portanto, expectativas em relação ao novo documento. Francisco Ferreira espera que ele seja "decisivo na negociação do pós-Quioto", o que pode traduzir-se em metas mais austeras de redução de emissões de gases com efeito de estufa. A Alemanha, que terá a presidência da União Europeia a partir do início de 2007, já anunciou que na reunião de ministros europeus do Ambiente na próxima Primavera vai propor uma redução de 30 por cento até 2020 - a meta estabelecida por Quioto é de oito por cento entre 2008 e 2012. A versão final do relatório será apresentada numa reunião do IPCC em Paris, nos primeiros dias de Fevereiro. Mas "mais de 90 por cento está escrito", garante o climatologista Ricardo Trigo, e foi enviado pelas Nações Unidos a um grupo seleccionado de especialistas e governos para leitura. O que pode mudar entretanto, nota o El País, é o resumo para decisores políticos, que é aprovado frase a frase.
in publico: 27-12-2006